martes, 28 de febrero de 2017

UMA VIAGEM À ÍNDIA
DISSERTAÇÃO
O romance Uma viagem à Índia, do escritor português Gonçalo M. Tavares é uma obra de ficção, nomeada também como a primeira epopeia portuguesa do século XXI. O autor é considerado um dos mais aclamados escritores portugueses da nova geração, e não em vão, pois este romance ganhou o Prémio Portugal Telecom de Literatura e o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores em 2011. Com estrutura e caraterísticas da grande obra Os Lusíadas, a história é narrada em cantos, dez, respetivamente, com aproximadamente cem estrofes cada um. O que por vezes pode parecer chocante e cortante, torna-se numa narrativa profunda que nos leva desde o pensamento mais superficial até a crítica mais profunda do ser humano. Uma história de viagens, de mudanças e de lembranças é esta viagem à Índia.
Começamos falando de Bloom, o protagonista desta história. Um homem que por acontecimentos para nada agradáveis decide iniciar uma viagem, mas não qualquer viagem, ele quer ir à Índia, pois está à procura de esquecimento e sabedoria. Mas, pode procurar-se isso? Segundo o nosso Bloom, a resposta é sim. E ainda mais incrível, não há melhor lugar para esta busca que a Índia. É que acaso existe um lugar com mais sabedoria que a Índia? Pois, segundo o nosso caro Bloom, não, não há. O próprio Eduardo Lourenço disse no prefácio desta obra que <<sabedoria>> e <<esquecimento>> é tudo o que o Ocidente nunca teve e nunca desejou” (Pp. 18), mas, é verdade isto? O que eu considero mais lógico nesta história é que “A Índia é para o Ocidente a porta aberta e misteriosa para uma quietude capaz de nos curar do nosso demoníaco desassossego” (Pp.14). Pois sempre achamos que vamos encontrar calma num lugar que não seja onde estamos, onde aconteceu algo negativo, sempre, como consequência do nosso egoísmo intrínseco, fugimos. No caso do Bloom, nada melhor para fugir que a Índia, o lugar predileto da espiritualidade, onde talvez consiga isso que perdeu, além disso que procura.
O triste desta história é que, apesar da viagem que faz o nosso “herói”, pois assim é chamado, não consegue a sabedoria e o esquecimento que tanto procurou; conversou, correu, comeu, e andou por diferentes países, esteve em diferentes situações, conheceu verdadeiros amigos e inimigos, deu presentes e foi roubado, mas, ainda assim, não alcançou esquecer, e ainda pior, não voltou sábio para o seu natal Portugal, de onde saíra com grandes vontades de mudar. No entanto, o nosso Bloom mudou, sim, como mudam todas as pessoas nas viagens, mas não mudou para bem. É mesmo a sua natureza egoísta que não o deixou esquecer, pois mantendo as lembranças é que se sente forte e importante, com um propósito de vida, mesmo que não seja importante. É por isto que Hobbes, na sua teoria do Leviatã diz que “a luta ocorre porque cada homem persegue racionalmente os seus próprios interesses, sem que o resultado interesse a alguém”. É que por vezes somos assim, temos a necessidade de mostrar qualquer coisa, seja o que for, para que os outros vejam, saibam, mesmo quando isso não tenha importância nenhuma, está na nossa natureza demonstrar algo para sentir-nos importantes.
O SER HUMANO COMO SER EGOÍSTA
Podemos falar de relações com outras obras, de intertextualidade, de sentimentos, de viagens, de figuras retóricas, mas não, neste romance encontramos algo muito singular nos seres humanos; o egoísmo. Há diferentes frases nesta obra nas que se reflete sobre o egoísmo, e por vezes notamos uma sorte de denúncia ao egoísmo intrínseco dos seres humanos. É nessas denúncias nas que além se compara o homem com os animais, e que, por vezes, para não dizer sempre, os animais acabam sendo melhores do que nós em matéria de amizade e sinceridade (embora pareça óbvio). É do egoísmo natural nos seres humanos que vamos falar, de nós como seres contaminados, e de nós como somos olhados e descritos em Uma viagem à Índia.
Neste sentido, podemos perguntar, é o egoísmo verdadeiramente tão mau como acha a sociedade? Vejamos diferentes definições; segundo o Dicionário Priberam o egoísmo é definido como o “Amor exclusivo à pessoa e aos interesses próprios”, mesmo sem amor, o nosso Bloom tem dois interesses principais que tenta alcançar mesmo viajando sozinho através do mundo, ele tem, por vezes, diferentes encontros nos que pode aprender muito mais do que na Índia, mas, além de sabedoria e esquecimento, a Índia própria é um dos seus objetivos, faz parte dos seus desejos. Por sua vez, Schopenhauer, in "A Arte de Insultar" define mais ou menos o egoísmo como um “Todo para mim, nada para os outros”, então, tem esta definição alguma relação com o nosso Bloom? É que acaso esse <<esquecimento>> e essa <<sabedoria>> não a poderia conseguir em alguém, mas sim em algo? Considero então que o nosso Bloom, o nosso “herói”, além de egoísta, por não querer compartilhar vivências com os outros, é também cobarde por não querer aprender dos outros, desses que ensinam mesmo quando não têm esse propósito.
Schopenhauer também diz que tudo o que se opõe ao egoísmo do ser humano provoca o seu mau humor, a sua ira e o seu ódio. “Ele tentará aniquilá-lo como a um inimigo”. Talvez isto tenha relação também com o nosso Bloom, quem matou seu pai pelo fato dele matar à sua Mary. Segundo esta afirmação o homem, e não só o Bloom, conhece o maior temor e a maior raiva quando algo se opõe à realização de um desejo. Neste sentido, pergunto, até que ponto podemos chegar com o nosso egoísmo? O que é o que somos capazes de fazer? Segundo o Bloom, matar.
A competência, o bem individual, o “primeiro eu”, e a satisfação das nossas próprias necessidades por cima das dos outros são caraterísticas do homem desde tempos memoriais, mas que agora, como sociedade avançada, nota-se ainda mais. É no Leviatã que Hobbes descreve isto; que os homens, mesmo vivendo em sociedade têm de competir pela riqueza, pela segurança e pela glória, e é isto o que aparece no nosso romance: “Nos homens todos os órgãos se resumem a uma função: a de competir” (Pp. 131). Mais do que comprovado, a competência faz parte do ser humano ordinário. No entanto, a competência nem sempre é má, é um ato que faz com que provemos algo, mesmo quando isso não seja importante. A competência pode fazer com que desenvolvamos virtudes, mas como seres egoístas, desenvolvemos defeitos.
Como uma crítica nesta história por parte do narrador, vemos: “as formigas, por exemplo, sendo animais surdos-mudos têm as patinhas da frente disponíveis para o diálogo, mas tal facto impede-as de conversar enquanto caminham – prazer específico da espécie humana” (Pp. 140). Não há dúvidas de que isto, mais do que uma crítica, é um fato, pois vemos como a conversação vem mudando desde que temos ocupações ou simplesmente “algo mais importante para fazer” e fazemos várias coisas à vez para economizar o nosso importantíssimo tempo, como falar e comer, falar e caminhar, falar e, qualquer coisa, pois achamos que o diálogo, o verdadeiro diálogo, não é tão importante como para deter as nossas ações para falar com alguém quando for necessário. Como um ato raríssimo, vemos que nem sempre isto é assim, pois na página 106 lemos “Que belo quadro, quando os homens assim se cruzam, amigavelmente, parecem afinal, ser animais com tendências para números pares e não para o egoísmo da unidade”. Pois quando percebemos sinceridade achamos que é falso, incrível.
Não é para estarmos espantados de nós como seres humanos, pois todo isto tem até uma explicação biológica, o egoísmo está em nossos genes. Segundo Dawkins e a sua teoria do Gene egoísta, é o egoísmo do gene o responsável de criar um comportamento individual, eis a nossa salvação, não somos nós, são os nossos genes. Segundo o biólogo, o bem-estar da espécie como um todo e o amor universal são conceitos que não têm relação com a evolução, pois desde o início da história procuramos atingir os nossos objetivos como indivíduos e não como comunidades, ignorando assim que o resultado que podemos atingir em conjunto pode ser ainda melhor, mas para os nossos olhos não é tão atrativo o mérito coletivo. É da seguinte maneira que Tavares, indiretamente, descreve que os humanos rejeitam o conjunto: “O mar tem peixes porque a natureza escolheu a mistura em vez da rígida separação” (Pp. 217). No caso do homem é muito diferente, por séculos sofremos de racismo como mostra de rejeição aos outros, é triste, mas ainda hoje não o ultrapassamos esse fato, e embora o façamos, haverá sempre mais um elemento para nos separar e não para nos juntar.
Eis mais uma declaração:
O olhar de um homem é mais importante para esse homem que as coisas para que esse homem olha. Parece óbvio, e é. Somos egoístas: olhamos e levamos o nosso olhar conosco. Mesmo depois de olhar para quem amamos. Não queremos ficar cegos, e é tudo (Pp. 321).
Neste sentido, esta declaração faz-nos refletir sobre o poder que pode atingir o nosso egoísmo, e a importância que pode ter a nossa ação frente a qualquer outra coisa ou frente a qualquer outro alguém. Neste texto nota-se como o narrador afirma de maneira sincera que os seres humanos somos egoístas até quando olhamos, pois achamos que ainda mais importante do que o que olhamos é o que nós fazemos, mas, é sempre assim? Podemos chegar até este ponto?
Além de considerar os nossos atos como superiores, achamos que é imperativo fazer com que os outros saibam o que fazemos e que tão importante é isso para nós, mesmo que isso não interesse a ninguém, como já foi dito. É na página 339 do romance que lemos acerca das espécies que choram pelos seus mortos, segundo o narrador, todas as espécies fazem isso, mas só os homens são os que se alegram com suas próprias alegrias. O que é isto? É verdadeiramente necessário? São muitas perguntas e há poucas respostas. O surpreendente não é que só nós façamos isso, o surpreendente é que não é só isso o que fazemos.
Para o que há resposta neste romance é para a hipótese de que o homem é comparado e desprestigiado frente os animais. Isto acontece inúmeras vezes no texto, mas só nomearemos algumas. O homem, além de egoísta, é visto como hipócrita, pois “Os amigos dão conselhos, que é perigosíssimo, as ameaças dos inimigos são pois os verdadeiros conselhos” (Pp. 346). Isto pode ver-se numa típica competência, na que uma pessoa, um “amigo” tenta convencer o outro de fazer uma coisa ou outra para obter uma vantagem para ele próprio. Mas não é só isso, a hipocrisia é denunciada até em termos de religião, nada novo, em verdade, mas é forte ler “Talvez leões e tigres sejam afinal mais santos que multidões inteiras que rezam na igreja” (Pp. 159). Comparações que nos fazem refletir sobre o conceito de amizade e de sinceridade que utilizamos hoje em dia, já que somos comparados com animais ferozes e sanguinários como os leões. Será que na verdade somos piores do que eles?
É que estamos tão contaminados assim? Os nossos genes não podem ter menos qualidade egoísta e mais qualidade altruísta? Não falo de sacrificar-nos sempre, mas de ter um pouco de sentimento nos nossos corações, isso que nos faz “humanos”, seres que podemos ajudar, comunicar e amar. Parece que neste romance Tavares só quis expor a negatividade dos homens, talvez, como uma crítica, como uma denúncia, para fazer com que reflitamos e tentemos mudar, mas isso é só uma suposição, para todo é preciso evoluir, pois, mesmo ele disse, “O homem resiste, faz parte dos seus deveres de animal” (Pp. 448).



BIBLIOGRAFIA
“Egoísmo” in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/ego%C3%ADsmo
Amaral, M. (2008). O portal da história: teoría política. Recuperado em: http://www.arqnet.pt/portal/teoria/leviata.html
Dawkins, R. (2007). O gene egoísta. Companhia das letras. Recuperado em:http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe/trecho.php?codigo=12134
Schopenhauer, A. (s.d.). O homem - um ser egoísta. Recuperado em: http://www.citador.pt/textos/o-homem-um-ser-egoista-arthur-schopenhauer

Tavares, G. (2010). Uma viagem à Índia. 1era ed. Lisboa: Caminho.

domingo, 5 de febrero de 2017

A relevância da morte



Desde a antiguidade a morte tem sido um tema de grande controvérsia, evidentemente, porque ela representa o final inesperado daquilo tão estimado e conhecido como é a vida. No entanto, nem sempre foi assim, a morte, como todo processo, foi vista de diferentes maneiras segundo o tempo em que se efetuava. Desta maneira, a morte foi considerada um ato público, uma festa, um segredo, até o ponto de se considerar algo triste e doloroso. Mas, como saber reagir diante ela? É verdadeiramente necessário sofrer?

Quando uma pessoa morrer, o fato resulta catastrófico para alguns e para outros é o momento perfeito para valorizar suas vidas. E é que às vezes nos sentimos mais vivos quando soubemos que alguém mais morreu. Mas, por quê? É nesse cenário de perda e ganho no qual nos perguntamos: qual é a transcendência da morte de uma pessoa para o mundo? Como se deve definir? Para responder essas perguntas estudaremos dois poemas do celebérrimo Fernando Pessoa que nos permitirão constatar a relevância da morte no mundo, neste caso, com os poemas Quando Vier a Primavera e O Menino de Sua Mãe.

Certo é que quando uma pessoa morrer, seus seres queridos ficarão chateados, mais essa chatice não acarretará o encerramento das suas vidas e é isso o que autor constata no poema Quando Vier a Primavera. Si você morrer, o mundo não deixará de ser mundo. Você simplesmente representa uma gota de água no mar que é a humanidade. De fato, nosso referente Pessoa, expressa <<Quando vier a Primavera / Se eu já estiver morto, / As flores florirão da mesma maneira>> (Caeiro, 1925). Nestes versos nota-se que a persona não tem medo de morrer, a morte não lhe produz insegurança nenhuma, e é isso o que preocupa a grande maioria quando pensarem na morte, o desconhecido, a incerteza.

Além disso, Pessoa, através do seu autonomeado mestre Alberto Caeiro manifesta aquela visão objetiva da vida ao expressar a inexistente repercussão da sua morte <<Sinto uma alegria enorme / Ao pensar que minha morte não tem importância nenhuma>> (Caeiro,1925), o qual, se olharmos nosso quotidiano, é a verdade mais universal. Essa declaração não só constata a irrelevância da morte de uma pessoa, mas também poderia representar uma sorte de solidariedade; imagine que o mundo se tornar um caos cada vez que uma pessoa falecer. Eis o momento que pensamos que o trágico é questão de perspectiva.

No caso do poema O Menino de Sua Mãe, nota-se que a situação é muito diferente, pois a morte representa dor e perda, mas neste caso, a morte dói aos que estão perto do falecido <<De um lenço... Deu-lho a criada/ Velha que o trouxe ao colo>>. Neste sentido, há mais uma diferença, pois no primeiro poema se fala da morte como um evento futuro, <<Quando vier a Primavera/ Se eu já estiver morto>>, mas ela ainda não tem chegado, a pessoa ainda não morreu, por contrário, no segundo poema, a morte chegou e levou-se consigo alguém <<Jaz morto, e apodrece,/ O menino da sua mãe>>.

Pode-se verificar esse sentimento de perda e a nostalgia de um bem perdido ao lermos <<Filho único, a mãe lhe dera/ Um nome e o mantivera:/ “O menino da sua mãe”>>. Pois além da morte ele sempre vai ser o seu filho, o seu amor, o seu bem, e é essa perda a que por vezes custa ultrapassar para uns mais do que para outros. Pode notar-se também que a vida é um processo, para uns mais longo do que para outros, mas um processo que vai acabar em qualquer momento. Neste sentido, considera-se a brevidade da vida do menino e a perda que representa a sua morte: <<Tão jovem! Que jovem era! / (Agora que idade tem?)>>. Pois achamos que os jovens são o futuro das gerações, que tem de descobrir, experimentar, e a sua morte além de uma perda, é uma pena.

Como se evidencia neste texto, Pessoa permite-nos reflexionar no que diz respeito à subjetividade. Através da análise dos seus poemas, podemos perceber o leque de perspectivas, sejam negativas ou positivas, que se podem obter de um fato “tão trágico” como a morte; por conseguinte, a morte pode definir-se segundo a situação na que se encontre a pessoa, mas também se deve a como é vista nesse momento pela sociedade, é dizer, sempre vai depender do contexto. É necessário compreender que a morte, o morrer e o medo de morrer despertam sentimentos que não estamos costumados a expressar, e que a morte é um processo de mudança, de transformação, um processo pessoal e interno, que só se pode ultrapassar quando o aceitamos como normal e quotidiano, tanto como a vida e viver. É nesse momento em que encontramos plenitude.


Jerlín Castillo - Ana Volpe

Fontes:

Quando Vier a Primavera

O Menino de Sua Mãe