UMA VIAGEM À ÍNDIA
DISSERTAÇÃO
O romance Uma viagem à Índia, do escritor português
Gonçalo M. Tavares é uma obra de ficção, nomeada também como a primeira epopeia
portuguesa do século XXI. O autor é considerado um dos mais aclamados
escritores portugueses da nova geração, e não em vão, pois este romance ganhou
o Prémio Portugal Telecom de Literatura e o Grande Prémio de Romance e Novela
da Associação Portuguesa de Escritores em 2011. Com estrutura e caraterísticas
da grande obra Os Lusíadas, a história
é narrada em cantos, dez, respetivamente, com aproximadamente cem estrofes cada
um. O que por vezes pode parecer chocante e cortante, torna-se numa narrativa
profunda que nos leva desde o pensamento mais superficial até a crítica mais
profunda do ser humano. Uma história de viagens, de mudanças e de lembranças é
esta viagem à Índia.
Começamos
falando de Bloom, o protagonista desta história. Um homem que por
acontecimentos para nada agradáveis decide iniciar uma viagem, mas não qualquer
viagem, ele quer ir à Índia, pois está à procura de esquecimento e sabedoria. Mas,
pode procurar-se isso? Segundo o nosso Bloom, a resposta é sim. E ainda mais
incrível, não há melhor lugar para esta busca que a Índia. É que acaso existe um
lugar com mais sabedoria que a Índia? Pois, segundo o nosso caro Bloom, não, não
há. O próprio Eduardo Lourenço disse no prefácio desta obra que
<<sabedoria>> e <<esquecimento>> é tudo o que o
Ocidente nunca teve e nunca desejou” (Pp. 18), mas, é verdade isto? O que eu
considero mais lógico nesta história é que “A Índia é para o Ocidente a porta
aberta e misteriosa para uma quietude capaz de nos curar do nosso demoníaco desassossego”
(Pp.14). Pois sempre achamos que vamos encontrar calma num lugar que não seja
onde estamos, onde aconteceu algo negativo, sempre, como consequência do nosso
egoísmo intrínseco, fugimos. No caso do Bloom, nada melhor para fugir que a Índia,
o lugar predileto da espiritualidade, onde talvez consiga isso que perdeu, além
disso que procura.
O triste desta história é que, apesar da viagem que
faz o nosso “herói”, pois assim é chamado, não consegue a sabedoria e o esquecimento
que tanto procurou; conversou, correu, comeu, e andou por diferentes países,
esteve em diferentes situações, conheceu verdadeiros amigos e inimigos, deu
presentes e foi roubado, mas, ainda assim, não alcançou esquecer, e ainda pior,
não voltou sábio para o seu natal Portugal, de onde saíra com grandes vontades
de mudar. No entanto, o nosso Bloom mudou, sim, como mudam todas as pessoas nas
viagens, mas não mudou para bem. É mesmo a sua natureza egoísta que não o
deixou esquecer, pois mantendo as lembranças é que se sente forte e importante,
com um propósito de vida, mesmo que não seja importante. É por isto que Hobbes,
na sua teoria do Leviatã diz que “a luta ocorre porque cada homem persegue
racionalmente os seus próprios interesses, sem que o resultado interesse a
alguém”. É que por vezes somos assim, temos a necessidade de mostrar qualquer
coisa, seja o que for, para que os outros vejam, saibam, mesmo quando isso não tenha
importância nenhuma, está na nossa natureza demonstrar algo para sentir-nos
importantes.
O
SER HUMANO COMO SER EGOÍSTA
Podemos falar de
relações com outras obras, de intertextualidade, de sentimentos, de viagens, de
figuras retóricas, mas não, neste romance encontramos algo muito singular nos
seres humanos; o egoísmo. Há diferentes frases nesta obra nas que se reflete
sobre o egoísmo, e por vezes notamos uma sorte de denúncia ao egoísmo
intrínseco dos seres humanos. É nessas denúncias nas que além se compara o
homem com os animais, e que, por vezes, para não dizer sempre, os animais
acabam sendo melhores do que nós em matéria de amizade e sinceridade (embora
pareça óbvio). É do egoísmo natural nos seres humanos que vamos falar, de nós
como seres contaminados, e de nós como somos olhados e descritos em Uma viagem à Índia.
Neste sentido,
podemos perguntar, é o egoísmo verdadeiramente tão mau como acha a sociedade? Vejamos
diferentes definições; segundo o Dicionário Priberam o egoísmo é definido como
o “Amor exclusivo à pessoa e aos interesses próprios”, mesmo sem amor, o nosso
Bloom tem dois interesses principais que tenta alcançar mesmo viajando sozinho através
do mundo, ele tem, por vezes, diferentes encontros nos que pode aprender muito
mais do que na Índia, mas, além de sabedoria e esquecimento, a Índia própria é
um dos seus objetivos, faz parte dos seus desejos. Por sua vez, Schopenhauer,
in "A Arte de Insultar" define mais ou menos o egoísmo como um “Todo
para mim, nada para os outros”, então, tem esta definição alguma relação com o
nosso Bloom? É que acaso esse <<esquecimento>> e essa
<<sabedoria>> não a poderia conseguir em alguém, mas sim em algo?
Considero então que o nosso Bloom, o nosso “herói”, além de egoísta, por não
querer compartilhar vivências com os outros, é também cobarde por não querer
aprender dos outros, desses que ensinam mesmo quando não têm esse propósito.
Schopenhauer
também diz que tudo o que se opõe ao egoísmo do ser humano provoca o seu mau
humor, a sua ira e o seu ódio. “Ele tentará aniquilá-lo como a um inimigo”. Talvez
isto tenha relação também com o nosso Bloom, quem matou seu pai pelo fato dele matar
à sua Mary. Segundo esta afirmação o homem, e não só o Bloom, conhece o maior
temor e a maior raiva quando algo se opõe à realização de um desejo. Neste
sentido, pergunto, até que ponto podemos chegar com o nosso egoísmo? O que é o
que somos capazes de fazer? Segundo o Bloom, matar.
A competência, o
bem individual, o “primeiro eu”, e a satisfação das nossas próprias
necessidades por cima das dos outros são caraterísticas do homem desde tempos
memoriais, mas que agora, como sociedade avançada, nota-se ainda mais. É no
Leviatã que Hobbes descreve isto; que os homens, mesmo vivendo em sociedade têm
de competir pela riqueza, pela segurança e pela glória, e é isto o que aparece
no nosso romance: “Nos homens todos os órgãos se resumem a uma função: a de
competir” (Pp. 131). Mais do que comprovado, a competência faz parte do ser
humano ordinário. No entanto, a competência nem sempre é má, é um ato que faz
com que provemos algo, mesmo quando isso não seja importante. A competência pode
fazer com que desenvolvamos virtudes, mas como seres egoístas, desenvolvemos
defeitos.
Como uma crítica
nesta história por parte do narrador, vemos: “as formigas, por exemplo, sendo
animais surdos-mudos têm as patinhas da frente disponíveis para o diálogo, mas
tal facto impede-as de conversar enquanto caminham – prazer específico da
espécie humana” (Pp. 140). Não há dúvidas de que isto, mais do que uma crítica,
é um fato, pois vemos como a conversação vem mudando desde que temos ocupações ou
simplesmente “algo mais importante para fazer” e fazemos várias coisas à vez
para economizar o nosso importantíssimo tempo, como falar e comer, falar e
caminhar, falar e, qualquer coisa, pois achamos que o diálogo, o verdadeiro diálogo,
não é tão importante como para deter as nossas ações para falar com alguém
quando for necessário. Como um ato raríssimo, vemos que nem sempre isto é
assim, pois na página 106 lemos “Que belo quadro, quando os homens assim se
cruzam, amigavelmente, parecem afinal, ser animais com tendências para números
pares e não para o egoísmo da unidade”. Pois quando percebemos sinceridade
achamos que é falso, incrível.
Não é para
estarmos espantados de nós como seres humanos, pois todo isto tem até uma
explicação biológica, o egoísmo está em nossos genes. Segundo Dawkins e a sua
teoria do Gene egoísta, é o egoísmo do gene o responsável de criar um
comportamento individual, eis a nossa salvação, não somos nós, são os nossos
genes. Segundo o biólogo, o bem-estar da espécie como um todo e o amor
universal são conceitos que não têm relação com a evolução, pois desde o início
da história procuramos atingir os nossos objetivos como indivíduos e não como
comunidades, ignorando assim que o resultado que podemos atingir em conjunto
pode ser ainda melhor, mas para os nossos olhos não é tão atrativo o mérito coletivo.
É da seguinte maneira que Tavares, indiretamente, descreve que os humanos
rejeitam o conjunto: “O mar tem peixes porque a natureza escolheu a mistura em
vez da rígida separação” (Pp. 217). No caso do homem é muito diferente, por
séculos sofremos de racismo como mostra de rejeição aos outros, é triste, mas
ainda hoje não o ultrapassamos esse fato, e embora o façamos, haverá sempre
mais um elemento para nos separar e não para nos juntar.
Eis mais uma
declaração:
O olhar de um homem é mais importante para esse homem que as coisas para
que esse homem olha. Parece óbvio, e é. Somos egoístas: olhamos e levamos o
nosso olhar conosco. Mesmo depois de olhar para quem amamos. Não queremos ficar
cegos, e é tudo (Pp. 321).
Neste sentido,
esta declaração faz-nos refletir sobre o poder que pode atingir o nosso
egoísmo, e a importância que pode ter a nossa ação frente a qualquer outra
coisa ou frente a qualquer outro alguém. Neste texto nota-se como o narrador
afirma de maneira sincera que os seres humanos somos egoístas até quando
olhamos, pois achamos que ainda mais importante do que o que olhamos é o que nós
fazemos, mas, é sempre assim? Podemos chegar até este ponto?
Além de
considerar os nossos atos como superiores, achamos que é imperativo fazer com
que os outros saibam o que fazemos e que tão importante é isso para nós, mesmo
que isso não interesse a ninguém, como já foi dito. É na página 339 do romance
que lemos acerca das espécies que choram pelos seus mortos, segundo o narrador,
todas as espécies fazem isso, mas só os homens são os que se alegram com suas
próprias alegrias. O que é isto? É verdadeiramente necessário? São muitas
perguntas e há poucas respostas. O surpreendente não é que só nós façamos isso,
o surpreendente é que não é só isso o que fazemos.
Para o que há
resposta neste romance é para a hipótese de que o homem é comparado e desprestigiado
frente os animais. Isto acontece inúmeras vezes no texto, mas só nomearemos
algumas. O homem, além de egoísta, é visto como hipócrita, pois “Os amigos dão
conselhos, que é perigosíssimo, as ameaças dos inimigos são pois os verdadeiros
conselhos” (Pp. 346). Isto pode ver-se numa típica competência, na que uma
pessoa, um “amigo” tenta convencer o outro de fazer uma coisa ou outra para obter
uma vantagem para ele próprio. Mas não é só isso, a hipocrisia é denunciada até
em termos de religião, nada novo, em verdade, mas é forte ler “Talvez leões e
tigres sejam afinal mais santos que multidões inteiras que rezam na igreja”
(Pp. 159). Comparações que nos fazem refletir sobre o conceito de amizade e de
sinceridade que utilizamos hoje em dia, já que somos comparados com animais
ferozes e sanguinários como os leões. Será que na verdade somos piores do que
eles?
É que estamos tão
contaminados assim? Os nossos genes não podem ter menos qualidade egoísta e
mais qualidade altruísta? Não falo de sacrificar-nos sempre, mas de ter um
pouco de sentimento nos nossos corações, isso que nos faz “humanos”, seres que
podemos ajudar, comunicar e amar. Parece que neste romance Tavares só quis expor
a negatividade dos homens, talvez, como uma crítica, como uma denúncia, para
fazer com que reflitamos e tentemos mudar, mas isso é só uma suposição, para
todo é preciso evoluir, pois, mesmo ele disse, “O homem resiste, faz parte dos
seus deveres de animal” (Pp. 448).
BIBLIOGRAFIA
“Egoísmo” in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em
linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/ego%C3%ADsmo
Amaral, M. (2008). O portal da história: teoría política.
Recuperado em: http://www.arqnet.pt/portal/teoria/leviata.html
Dawkins, R. (2007). O
gene egoísta. Companhia das letras. Recuperado em:http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe/trecho.php?codigo=12134
Schopenhauer, A. (s.d.). O homem - um ser egoísta. Recuperado
em: http://www.citador.pt/textos/o-homem-um-ser-egoista-arthur-schopenhauer
Tavares, G. (2010). Uma
viagem à Índia. 1era ed. Lisboa: Caminho.